07 de Fevereiro de 2022


A reforma da Lei de Improbidade Administrativa e a sua aplicação imediata pelos tribunais

José Expedito Lima e Paula Lima Hyppolito Oliveira*

 

As mudanças trazidas pela Lei nº 14.230/2021 foram tão profundas que, ainda que se trate de mera reforma, a tentação de chamá-la de Nova Lei de Improbidade Administrativa é grande. Para se ter uma ideia, apenas dois dispositivos da antiga lei não sofreram alguma alteração. Vigente desde o dia 26 de outubro de 2021, o novo diploma trouxe mais segurança ao eliminar do ordenamento jurídico figuras como a modalidade culposa por atos de improbidade administrativa, bem como estabelecer um prazo prescricional de oito anos.

Merecem destaque os seguintes pontos da nova lei: (i) a exigência de dolo específico e a eliminação do tipo culposo para os atos de improbidade administrativa; (ii) a previsão expressa de aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador; (iii) a compensação de sanções aplicadas em outras esferas; (iv) a prescrição em oito anos, reduzíveis intercorrentemente a 04 (quatro) e (v) a majoração das penas para os atos de improbidade administrativa que importem em enriquecimento ilícito e lesão ao erário, com minoração das que afrontam os princípios da administração pública.

A exigência do dolo específico foi prevista pelo legislador no art. 1º, § 2º, ao se introduzir na redação do dispositivo que considera-se dolo a “vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”. Pela nova redação, os tipos descritos nos artigos 9º, 10º e 11º também passaram a ser rol taxativo (numerus clausus) e não mais exemplificativo (numerus apertus) como antes.

 Com isso, opera-se uma verdadeira revolução no que era pacificado pela jurisprudência pátria. Isso porque, no entendimento do STJ, "o elemento subjetivo, necessário à configuração de improbidade administrativa censurada nos termos do art. 11 da Lei 8.429/1992 é o dolo genérico de realizar conduta que atente contra os princípios da Administração Pública, não se exigindo a presença de dolo específico"[1]. Ainda nesse entendimento do STJ, o enriquecimento ilícito e o dano ao erário sempre seriam residuais à violação aos princípios da Administração Pública. 

A nova lei também determinou que apenas uma modalidade de improbidade administrativa pode ser imputada ao agente para cada ato cometido, sendo vedada a condenação do réu por tipo diverso do definido na petição inicial. Na prática, esses dispositivos afastam por completo o antigo entendimento do STJ.  Vale dizer que o mais comum até então era que o réu fosse condenado pela prática de violação aos princípios da Administração, combinada com lesão ao erário ou enriquecimento ilícito.

Também foi contrária ao entendimento pacificado do STJ a previsão legal expressa que afastou a presunção de dano em ações de improbidade administrativa (dano in re ipsa), sendo agora necessário comprovar a existência do risco para a decretação da indisponibilidade de bens.

Por outro lado, a previsão legal de que se aplicam os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador foi um grande avanço e coloca a ação de improbidade administrativa em uma categoria sui generis dentro do direito, já que impõe sanções ao agente, mas não é uma ação penal tampouco civil. Nesse aspecto, a nova lei abarcou o entendimento do STF de que se aplica ao direito administrativo sancionador os princípios do direito penal e a independência mitigada entre as esferas[2]. Esse reconhecimento torna aplicável à Lei nº 14.230/21 o art. 5º, inciso XL da Constituição Federal que prevê que a lei sempre retroagirá em benefício do réu. Ou seja, em todos os aspectos em que a nova redação for mais benéfica, ela deverá ser aplicada imediatamente em benefício dos réus.

O único ponto da nova lei que não é mais benéfico aos réus é a majoração da sanção de perda dos direitos políticos de dez para quatorze anos, no caso de enriquecimento ilícito, e de oito para doze anos, no caso de lesão ao erário. Já com relação aos atos que violem os princípios da Administração Pública, foi eliminada a sanção de perda dos direitos políticos, restando apenas a aplicação de multa civil de até vinte e quatro vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.

Portanto, diante da previsão legal expressa trazida pela nova lei da aplicação dos princípios do direito penal ao direito administrativo sancionador, tanto a exigência do dolo específico nos tipos de improbidade administrativa quanto a prescrição em oito anos e a revogação da perda dos direito políticos em caso de violação dos princípios da Administração Pública devem ser aplicados de imediato aos processos em curso. Já a perda dos direitos políticos, cuja sanção foi majorada pela Lei nº 14.230/21, apenas poderá ser aplicada aos casos ocorridos após a sua vigência.

Os tribunais já estão aplicando ex officio as alterações trazidas pela Lei nº 14.230/21 à Lei de Improbidade Administrativa em benefício do réu. O TRF-3, por exemplo, reconheceu recentemente[3]a prescrição intercorrente dos atos de improbidade administrativa que causam lesão ao erário com fulcro na nova lei. No caso concreto, mesmo com a verificação do dolo específico, foi afastada a improbidade administrativa e restou apenas a condenação em ressarcimento ao erário. Já o TRF-4 indeferiu a indisponibilidade de bens com base na presunção de dano levando em conta os novos ditames legais[4], mesmo entendimento aplicado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo ao reconhecer a retroatividade da lei mais benéfica e reformar a sentença para julgar improcedente o pedido inicial com base na exclusão do dano presumido em casos de dispensa de licitação[5]. E O TRF-5 deu provimento a um recurso interposto por um ex-secretário municipal de educação para afastar a improbidade administrativa com base na nova lei pela ausência comprovada de dolo e pelo fato de a modalidade culposa não ser mais objeto de repreensão[6].

As mudanças na Lei de Improbidade Administrativa eram necessárias. Os tipos abertos eram um risco demasiadamente elevado e afastavam os bons gestores da Administração Pública. Prejudicavam ainda a inovação e uma gestão mais eficiente, já que os gestores sempre preferiam percorrer o caminho já conhecido para não correr riscos. Ademais, a nova redação dos dispositivos é mais clara e alinhada com os princípios constitucionais.

Em uma primeira análise, os tribunais parecem ter abraçado a reforma na Lei de Improbidade Administrativa sem maiores questionamentos sobre a sua retroatividade no que for mais benéfica, o que é extremamente positivo para a criação de um ambiente mais seguro.

 

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[1] REsp. 951.389/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe 4/5/2011.

[2] Rlc nº 41.557/SP, Rel. Ministro GILMAR MENDES, SEGUNDA TURMA, Data do Julgamento 14/12/2020.

[3] TRF 3ª Região, 3ª Turma, APELAÇÃO CÍVEL nº 5000547-79.2018.4.03.6118, Rel. Desembargador Federal LUIS CARLOS HIROKI MUTA, julgado em 17/12/2021.

[4] TRF 4ª Região, 4ª Turma, AGRAVO DE INSTRUMENTO nº 5050307-83.2021.4.04.0000, Decisão Monocrática, Desembargadora Federal Vivian Josete Pantaleão Caminha.

[5] TJ-SP, 3ª Câmara de Direito Público, APELAÇÃO CÍVEL nº 3010759-26.2013.8.26.0451, Rel. Desembargador José Luiz Gavião de Almeida, julgado em 15/12/2021.

[6] TRF 5ª Região, 3ª Turma, APELAÇÃO CÍVEL nº 0001274-10.2013.4.05.8102, Rel. Desembargador Federal Thiago Mesquita Teles de Carvalho, julgado em 20/12/2016.